Entrevista com um papagaio

2002

Papagaio: Você vive preso numa gaiola?

Ricardo: Tá louco! Acho que não!

Papagaio: Você inventou as histórias desse livro?

Ricardo: Existem histórias que a gente inventa do começo ao fim. Tenho vários livros assim. As histórias deste livro, entretanto, são contos populares que eu recontei.

Papagaio: Contos populares?

Ricardo: Sim, são histórias muito antigas, criadas e guardadas na memória do povo. Elas vem sendo contadas de boca em boca desde que os portugueses chegaram ao Brasil e até
de antes pois os índios também contavam lindas histórias. Depois vieram as histórias das culturas africanas.

Pagagaio: Você quer dizer de bico em bico?

Ricardo: Mais ou menos isso. A mesma coisa acontece, por exemplo, com as piadas. Ninguém sabe quem inventou nem de onde vêm. A gente ouve, gosta, dá risada e conta de novo. Cada um, claro, do seu jeito.

Papagaio: Mas, e no caso dos contos? Como a coisa acontece?

Ricardo: Até hoje, nos lugares distantes, onde não há luz elétrica nem televisão, as pessoas à noite, depois do trabalho, costumam sentar em volta de uma fogueira para conversar, falar das novidades, trocar idéias, comentar os acontecimentos do dia. Nessas horas, sempre aparece alguém que sabe e gosta de contar histórias.

Papagaio: Mas como esses contadores aprendem suas histórias?

Ricardo: Antes de mais nada, todo o contador precisa gostar da história que conta. Sem isso não faz nenhum sentido contar nada. Outra coisa: muitas vezes, essas pessoas não sabem ler nem escrever. Aprendem ouvindo outros contadores e guardam tudo no coração e na memória. Por isso as histórias precisam ser muito boas. Ninguém vai guardar no coração e na memória uma história ruim.

Papagaio: E você? Como aprendeu os contos deste livro?

Ricardo: Existem pesquisadores maravilhosos, folcloristas, antropólogos, psicólogos, que viajam por aí, encontram esses contadores populares e anotam suas histórias. Depois publicam livros. A partir desses livros, escolho uma história, procuro as várias versões resgatadas pelos diferentes pesquisadores e aí tento contá-la do meu jeito. Há porém no livro No meio da noite escura tem um pé de maravilha histórias que aprendi ouvindo outros contadores. O importante é o seguinte: gosto muito das histórias que selecionei. Elas me emocionam e mexem comigo.

Papagaio: Mas pra quê essa trabalheira toda?

Ricardo: Uma história boa é um tesouro que merece ser guardado! Estive há pouco tempo em São Luís do Maranhão. Lá escutei uma história contada por uma pessoa analfabeta. Acontece que a tal história é versão do conto “A Mulher do Viajante” só que meu texto foi baseado numa recolha feita por Ana de Castro Osório em Portugal no fim de século XIX! Não é incrível isso? Se essa história é contada até hoje em São Luís, por uma pessoa que não sabe ler, portanto a aprendeu de outro contador, é porque ela é muito, muito boa.

Papagaio: Carambola! É verdade!

Ricardo: Outra coisa: esses contos sempre falam de assuntos que interessam a todas as pessoas de qualquer idade. Heróis lutando para se conhecer melhor. Como todos nós. Desafios que o herói precisa enfrentar para conquistar seu objetivo. Como todos nós. Heróis que às vezes precisam encarar o acaso, o desconhecido, o inesperado e o incompreensível. Como todos nós. Fora isso, são histórias cheias de sentimentos e temas conhecidos de todas as pessoas como o amor, a luta pela sobrevivência, a ambigüidade, o medo, a inveja, a curiosidade, o arrependimento, a injustiça, o desânimo, a generosidade, a esperteza e muitos outros. Na verdade, ficamos emocionados e identificados com a coragem, a perseverança e a inteligência do herói do conto maravilhoso. Observando sua luta e os ardis que inventa para vencer seus desafios, aprendemos truques que podem até nos ajudar a construir nossos próprios sonhos. Um desses truques, com certeza, é a esperança.

Papagaio: A esperança? Como assim?

Ricardo: Vou dar um exemplo: conhece a história do papagaio que vivia preso na gaiola?

Papagaio: Não!

Ricardo: Era uma vez um papagaio que vivia preso numa gaiola. Um belo dia, seu dono passou e perguntou: – Tudo bem aí? O papagaio suspirou sem responder nada. – Você reclama de boca cheia, disse o homem, – Sua vida não é tão ruim assim. Tem casa e comida de graça! – Mas eu queria ser livre para poder voar como os outros pássaros! respondeu o papagaio. Seu dono puxou outro assunto: – Amanhã vou sair de viagem. Devo visitar a floresta onde, anos atrás, consegui caçar você. Quer mandar um recado para seus amigos e parentes? O papagaio levantou a cabeça, olhou bem para o homem e respondeu: – Diga a eles que passo meus dias e minhas noites preso numa maldita gaiola! O dono da casa arranjou as malas e partiu. Voltou de viagem uma semana depois. – E aí? perguntou o papagaio.- Conseguiu falar com meus amigos e parentes? – Sim – respondeu o homem. – mas trago más notícias. Assim que dei a eles seu recado, eles arregalaram os olhos, colocaram as asas na garganta, botaram a língua de fora, gritaram, cambalearam e caíram mortos! Ao ouvir isso, o papagaio arregalou os olhos, colocou as asas na garganta, botou a língua de fora, gritou, cambaleou e também caiu morto. Chocado e sem saber o que pensar, o homem retirou o corpo do papagaio e, com cuidado, colocou o pobre bichinho deitado em cima da mesa da cozinha. Assim que se viu livre, o papagaio deu uma cambalhota no ar e saiu voando. Antes de cair no mundo, gritou para o homem: – Quando estiver de novo/ Nos lugares de onde eu vim/Por favor diga ao meu povo/Que o truque deu certo sim! Terminou a história. Gostou?

Papagaio: (com lágrimas nos olhos) Curupaco papaco! Se gostei? Caramba! Foi a história mais linda, comovente, triste, dramática, alegre, emocionante e extraordinária que já escutei em toda a minha vida! Aliás, mudando de assunto: quando você está pensando em viajar?

(extraída do livro No meio da noite escura tem um pé de maravilha! Ática, 2002)