A outra enciclopédia canina

Companhia das Letras | 1998

Texto revisto e ampliado

Meu amigo tinha um pastor alemão. Lembro que a gente ficava conversando no jardim enquanto o bicho dormia perto. De vez em quando, o pai desse amigo chegava e sussurava, de brincadeira, no ouvido do cachorro: “Vai pegar o gato!” Era fulminante. O animal explodia no ar com os olhos acesos, pêlos arrepiados e dentes arreganhados. Saía pelo jardim feito um dragão, latindo em busca de um gato imaginário… Quase todo o mundo tem uma história de cachorro para contar.

Há casos heróicos de cães, verdadeiros rin-tin-tins, que salvaram vidas humanas. Há os que conhecem a arte de trepar em árvores. Há cachorros acostumados a fumar charuto e beber uísque. Na minha rua, por exemplo,quando eu era pequeno, tinha o Bismarck, um cachorro grandalhão que morava numa casa mais acima.

O Bismarck passava o dia fingindo que dormia na frente do portão. Quando vinha gente pela calçada, esperava a pessoa chegar bem perto e dava um bote de supetão, rosnando com a dentuça ameaçadora. A maioria das pessoas passava por ali todos os dias, já estava acostumada e continuava seu caminho como se nada houvesse acontecido.

Quem, em compensação, não sabia das coisas, levava o maior susto. Vi uma senhora idosa saltando um portão de ferro de mais de 1,20 metro de altura feito uma atleta de chapéu e guarda-chuva. Vi um sujeito pular da cadeira de rodas e sumir ao longe mancando em disparada. Acho que foi um tipo de milagre.

Nessas ocasiões, o Bismarck voltava radiante, exibindo um sorriso nos lábios. Sim. Tenho certeza. O Bismarck sabia rir. Vi com meus próprios olhos o sacripanta, com os dentes de fora, rindo e balançando cabeça, enquanto o povo fugia desesperado.

Conheço casos dramáticos. A tragédia do cachorro, grande e pulguento, que, despachado para uma fazenda, fugiu, enfrentou mil e tantos quilômetros de estrada, voltou, entrou em casa, deitou-se debaixo da mesa da sala de jantar, fechou os olhos e morreu, deixando a família com sentimento de culpa pelo resto da vida.

Outra coisa. Conheci um sujeito que um dia pegou e olhou para seu cachorro nos olhos. Não sei se é verdade. O cachorro olhou nos olhos dele. O sujeito olhou mais. O cachorro também. Ficaram assim por algum tempo, em silêncio profundo, olho no olho. O cara contava isso com lágrimas nos olhos. Dizia que, de repente, o cachorro estremeceu, colocou as patas no peito, abriu a boca e, num esforço impressionante disse: “Os-car!” Acontece que Oscar era o nome do tal sujeito…

São histórias e mais histórias. Posso dizer que sempre gostei de ficar observando cachorros. O jeito dos cachorros. Seus focinhos. Seus maxilares. Os lábios. As pintas do rosto. As manchas pelo corpo. Os pêlos. O formato da cabeça. O movimento das orelhas. O modo de andar. O temperamento. O brilho no olhar. Tudo.

Quem já não admirou uma família de vira-latas, o pai na frente chefiando, depois a mãe atrás e os filhotes, atravessando com perícia as ruas perigosas da cidade? Confesso que muitas vezes a fisionomia ou os modos de um cachorro me fizeram lembrar uma determinada pessoa. Talvez a espécie canina tenha muito mais coisas em comum com a espécie humana do que se imagina. Afinal, as duas são gulosas, gostam de carinho, sentem dor, sonham, sabem carregar pulgas e, claro, vivem sempre tentando encontrar o melhor jeito para ser feliz.