Contos de Bichos do Mato

Ática | 2005

Passando na frente de uma casa, um andarilho sente um cheirinho delicioso vindo da cozinha. O sujeito é pobre e está faminto. Bate na porta e pede comida. Vem a dona da casa e diz que naquele dia não fez jantar.

O homem não se aperta. Será que por acaso ela não poderia emprestar uma panela para ele fazer um sopa de pedra? Surpresa, a dona de casa empresta. O andarilho enche a panela de água, põe dentro algumas pedras, prepara o fogo e coloca-a para ferver. A mulher fica só olhando.

Então ele pede uma colher e um tantinho de manteiga. Depois, um tiquinho de sal. Um pouquinho de cheiro verde, ia bem. Uma coisinha à toa de cebola. A dona da casa vai trazendo. Fatiazinhas de batata e chuchu, pode ser? Que tal um pedacinho de lingüiça e ainda um punhadinho de arroz?

No fim, o sujeito joga as pedras fora, toma a ótima sopa e vai embora de pança cheia. Dessa vez ele conseguiu enganar a fome.

Como julgar o herói dessa história? Alguém poderia dizer: “Ele é mau porque mentiu! Enganou a mulher”. Outra pessoa poderia argumentar: “Mas a mulher também mentiu e, além disso, o andarilho estava morrendo de fome. Lançou mão de um ardil para poder sobreviver!”.

As duas respostas podem ser acertadas. A segunda, porém, tem mais a ver com o sentido das narrativas de Contos de bichos do mato. O ardil é um dos recursos humanos de sobrevivência mais antigos. Flechas, armadilhas e disfarces são ardis e graças a eles o homem arcaico, em busca de alimento, pôde enfrentar e vencer animais muito maiores ou inimigos mais poderosos. Foi assim que a espécie humana conseguiu superar as adversidades e sobreviver até os nossos dias.

Mesmo os animais têm seus ardis. Adotam, por exemplo, as cores do seu hábitat, e assim, camuflados, conseguem iludir seus predadores. Na luta pela sobrevivência, até os vegetais usam recursos engenhosos para preservar a vida.

Os Contos de bichos do mato são narrativas que falam sobre a luta pela sobrevivência (e sobre o amor à vida) e foram criadas e recriadas principalmente por gente do povo, gente humilde vivendo em condições precárias. Pessoas acostumadas a todo dia acordar e ir à luta para garantir a sobrevivência naquele mesmo dia.

Nesse contexto, os homens lutam contra todo tipo de força: as forças da natureza, representadas por secas, chuvas, frio, doenças e epidemias, acidentes, perigos naturais e pela própria fome. E as forças de gente poderosa que os explora e escraviza.

Essas lutas talvez possam ser assim resumidas: uma sucessão de ardis, truques, malandragens, gambiarras e espertezas utilizados para conservar a vida. Na verdade, a fome, a busca de proteção e a luta desigual contra forças maiores são a semente de uma certa moral popular, por vezes chamada de moral ingênua.

As narrativas populares de bichos foram criadas a partir da moral ingênua. Em tese, como sabemos, a moral corresponde a um conjunto de normas de comportamento destinadas a regular as relações entre os indivíduos 1. Mas nem sempre lembramos que essas relações acontecem numa determinada comunidade social. Em outras palavras, o significado e as características da moral podem variar muito de sociedade para sociedade.

Aprendemos a pensar na moral como um conjunto de princípios gerais e universais de comportamento que deve ser respeitado por todos: não mentir, não roubar, não matar, valorizar a busca da justiça, da imparcialidade, da impessoalidade, da isenção e da neutralidade.

Mas como exigir que a moral de uma sociedade socialmente justa e equilibrada, onde todos os cidadãos pagam impostos e recebem em troca os benefícios do Estado – segurança, educação, saúde e trabalho –, seja igual à moral de uma sociedade desequilibrada onde cada um luta por si para poder sobreviver?

Para entender essas narrativas sem taxá-las de “politicamente incorretas” devemos considerá-las num contexto histórico e social específicos. Num mundo de injustiça, de tirania, de crueldade, onde impera a lei do mais forte, só pode vigorar a moral do “cada um por si e Deus por todos”, ou “comida pouca, meu pirão primeiro” ou “come mais quem come quieto” etc.

Trata-se de uma questão de sobrevivência. Sem levar em conta tudo isso não é possível compreender os Contos de bichos do mato. Mas não sejamos hipócritas. A moral ingênua, não pertence apenas ao povo pobre, humilde e socialmente desamparado. Ela é conhecida por todos os seres humanos, independentemente de graus de instrução e classes sociais. Quem nunca puxou a brasa para a sua sardinha que levante a mão!

Eis aí a dimensão riquíssima dessas histórias: elas possibilitam uma reflexão ética e uma discussão sobre a justiça, a liberdade de agir e os limites do comportamento humano.   Ricardo Azevedo   1 Diferentemente, a ética é a teoria ou a ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. Ou seja, representa um “conjunto sistemático de conhecimentos racionais e objetivos a respeito do comportamento humano moral” (Vazquez). Enquanto a moral é inseparável da atividade prática, a ética constitui-se na avaliação e reflexão sobre esta atividade.

Sobre o assunto, vale consultar VAZQUEZ, Adolfo Sanchez. Ética. Civilização Brasileira, 1999 e ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Universidade de Brasília, 1992.