Contos de enganar a morte

Editora Ática | 2003

Certa segunda-feira, eu estava na quarta série do primeiro grau, a professora entrou na classe com uma péssima notícia: o pai de um nosso colega tinha morrido afogado em Bertioga, no litoral paulista. Lembro do sentimento de medo: e se meu pai também morresse? Lembro de estremecer de pena e tristeza por causa do meu amigo. Lembro de me perguntar: o que é a morte?

Trata-se de um grave erro considerar a morte um assunto proibido ou inadequado para crianças. Heróis nacionais como Ayrton Senna, presidentes da república e políticos importantes, ídolos populares, parentes, amigos, vizinhos e até animais domésticos infelizmente podem morrer e morrem mesmo. A morte é indisfarçável.

Alguns adultos, porém, ainda insistem em acreditar que alienar crianças pode contribuir, de alguma forma, para sua formação (!).

Falar sobre a morte com crianças, é preciso deixar claro, não significa entrar em altas especulações ideológicas, abstratas e metafísicas. Nem em detalhes assustadores e macabros. Refiro-me a simplesmente colocar o assunto em pauta. Que ele esteja presente, através de textos e imagens, simbolicamente, na vida da criança. Que não seja jamais ignorado. Isso, note-se, nada tem a ver com depressão, morbidez, falta de esperança ou niilismo. Ao contrário, a morte pode ser vista, e é isso o que ela é, uma referência concreta e fundamental para a construção do sentido da vida. Existem assuntos sobre os quais adultos sabem mais e podem ensinar crianças. Entre eles não se encontram, por exemplo, a paixão, o sublime, a determinação da realidade e da fantasia, o sonho, a temporalidade e a busca do auto-conhecimento. Nem, muito menos, a morte e a mortalidade. Diante de assuntos assim, é preciso reconhecer, adultos e crianças sentem-se igualmente despreparados.

É muito bom quando a criança consegue se identificar com um adulto e descobrir, surpresa: “Puxa, ele é igual a mim! Ele também fica confuso, tem medo e não sabe direito!. Ele também se emociona e chora!”. Para a formação das crianças é essencial que surjam espaços de compartilhamento entre elas e os adultos. Crianças da vida rural, em geral muito pobres, costumam ter um contato bem mais sadio e natural com a morte. Dizia Walter Benjamim, sobre a época medieval, que naquele tempo “não havia uma só casa e quase nenhum quarto em que não tivesse morrido alguém”.O mesmo pode-se afirmar da vida rural e de muitos bolsões de pobreza urbana hoje no Brasil.

Lamentavelmente, a vida na sociedade tecnológica e de consumo, entre outros fatores, acabou por higienizar e explusar a morte do universo dos vivos. Isso tem tido um grande reflexo na vida das pessoas, nas famílias e nas escolas. Para ficar num exemplo, os jovens que assassinaram o pataxó Galdino de Jesus, alunos de escolas consideradas ótimas, talvez não fizessem o que fizeram se tivessem tido a chance de meditar um pouco mais sobre a mortalidade e a condição humana. Tento dizer que a violência de nosso dias pode ter a ver, entre muitos outros fatores, com o processo de alienação e ocultação da morte. Crianças e jovens precisam aprender a lidar com a vida, da qual a morte é parte inseparável. Pretender camuflá-la ou esconde-la é um desrespeito à inteligência e à capacidade de observação de qualquer ser humano. Além do que é completamente inútil.

Daí, a meu ver, a importância desses antiqüíssimos Contos de enganar a morte, narrativas populares que têm como ponto comum o herói que tenta vencer a morte. Com sua poesia, graça e magia, além de levantarem o assunto possibilitando, portanto, uma interessante reflexão, são, com certeza, uma verdadeira, divertida e apaixonada declaração de amor à vida.

Para terminar, gostaria de contar que venho mexendo com temas e assuntos da cultura popular desde agosto de 1981 quando publiquei , na Folhinha de S.Paulo, o texto Monstrengos de nossa terra, na verdade um pequeno inventário de seres fantásticos criados pelo povo.

Desde então, tenho pesquisado formas literárias populares, principalmente os contos de encantamento, adivinhas, quadras, frases feitas, anedotas e ditados.

O resultado desse trabalho está publicado nos livros Histórias folclóricas de medo e de quebranto, O moço, o gigante e a moça, João Forçudo, Pedro João e José, Histórias de bobos, bocós, burraldos e paspalhões, Meu livro de folclore, Armazém do Folclore, No meio da noite escura tem um pé de maravilha!, Bazar do folclore, Histórias que o povo conta e Se eu fosse aquilo.