O livro dos pontos de vista

Editora Ática | 2006

Faz de conta que estamos num restaurante e notamos que a pessoa da mesa ao lado pega um mamão maduro, abre e faz uma careta desapontada. É possível que o sujeito tenha escolhido a fruta bem madura pois crê que mamões assim são mais doces e deseja comer um mamão doce. Ficou desgostoso ao perceber que o mamão já tinha passado do ponto. Essa é uma explicação para sua ação e reação. Podem haver outras. É possível, por exemplo, que ele nunca tenha visto um mamão na vida, resolveu experimentar e não gostou. Vai ver que um parente querido do vizinho de mesa morreu engasgado com um mamão e aquela triste lembrança voltou naquele momento. Quem sabe, ao cortar o mamão, o sujeito tenha pensado: “Quando mais precisava, fulano não me deu uma mão!”. Ou então, pode ser que o sujeito seja feiticeiro e acredite que o estado das sementes dos mamões maduros sejam capazes de fazer revelações sobre o futuro. Fez cara feia por ter descoberto que, ao sair do restaurante, será atropelado por uma jamanta carregada, por coincidência, de mamões.” (1)

A existência de pontos de vista variados acontece porque as pessoas são parecidas e, ao mesmo tempo, muito diferentes umas das outras. Afinal, cada uma tem sua experiência de vida, sua cultura, sua história, suas crenças, seus desejos, seu estilo e gosto pessoal, enfim, sua maneira de ser. Aliás, é uma questão de respeito humano jamais esquecer disso quando olhamos uma pessoa à nossa frente.

O assunto tem aparecido no meu trabalho desde O peixe que podia cantar, meu primeiro livro, e depois em vários outros como Um homem no sótão, Nossa rua tem um problema, Uma velhinha de óculos, chinelos e vestido azul de bolinhas brancas, Chega de saudade, O livro das palavras e agora este O livro dos pontos de vista.

Quero lembrar o seguinte: vivemos cercados de livros didáticos, apostilas e manuais técnicos mas nem sempre reparamos que eles costumam ser textos monológicos, ou seja, tratam dos assuntos através um único e exclusivo ponto de vista. É preciso que assim seja pois, caso contrário, seria impossível ensinar e transmitir o conhecimento necessário à construção da nossa educação formal e técnica.

Pois bem, uma das características mais relevantes da literatura de ficção é, ao contrário, sempre tentar fugir das lições e informações objetivas e exatas. A razão é simples: os temas abordados pela literatura não costumam ser passíveis de lições e exercícios. Como pensar em métodos, teorias e exatidões quando queremos falar das paixões humanas; de medos e sonhos; da busca do auto-conhecimento; de ambigüidades e contradições; de manias; de esperança; de incoerência ou, para ficar no nosso tema, da diferença entre as pessoas e seus pontos de vista? Como, por exemplo, “ensinar” e dar “lições, métodos e exercícios” a respeito do que sentimos em relação ao Outro? Refiro-me a gostar ou não gostar. Refiro-me a conviver com a diferença essencial, muitas vezes incompreensível e inacreditável, entre nós e as outras pessoas.

Uma coisa é certa: se todos os homens fossem absolutamente diferentes, as sociedades não existiriam e sem elas a humanidade não teria a menor chance de sobreviver. Por outro lado, se todos os homens fossem absolutamente iguais, a humanidade também não existiria pois seria destruída pelo tédio e pela mesmice. Eis porque a diversidade entre os homens e seus pontos de vista é tão rica, vital e importante. É ela a principal razão do livro que o leitor tem agora em mãos.

(1) Inventei o exemplo a partir de outro dado por HACKING, Ian. Por que a linguagem interessa à filosofia? São Paulo, Editora Unesp/Cambridge, 1999.