A hora do cachorro louco

Ática | 2006

Cap. 8

Na manhã seguinte, Marcelo faz uma experiência radical. Decide ficar o dia inteiro sem comer para ver o que é sentir fome.

Na hora do café da manhã, Raul está sempre com pressa pois leva os filhos à escola antes de ir para o trabalho. Leda ainda não acordou pois entra no trabalho mais tarde. Camila não está nem aí. Dona Maria, já colocou a mesa e partiu para a faxina dos banheiros. Em outras palavras, ninguém percebe que aquele dia Marcelo não colocou absolutamente nada na boca.

Na escola, o menino sente-se irritado por nada, inseguro, desconfortável, sem vontade de conversar com ninguém. É uma sensação de estranheza como se alguma coisa estivesse faltando. No recreio, às nove e quarenta e cinco, hora do lanche, a coisa piora. Não é fácil ficar em volta dos colegas comendo, rindo e conversando. Nunca tinha reparado no perfume delicioso dos lanches. Era gente feliz descascando frutas. Sanduíches imensos recheados com queijo e presunto. Apetitosos pedaços de pizza. Bolos embrulhados em papel alumínio. Biscoitinhos variados. Barras de chocolate. Barras de cereal. Garrafas térmicas com chocolate gelado, leite, coalhadas, refrigerantes, sucos e mais sucos.

Marcelo passa o recreio enfiado no banheiro. Prefere trancar-se no box, sentar-se na privada e ficar lá quieto, longe daquela comilança.

No segundo período, mal consegue prestar atenção nas aulas. Sente muita fraqueza. Enquanto as matemáticas, histórias, ciências e gramáticas passam de aula em aula, sua cabeça só consegue imaginar sanduíches de salame e queijo derretido, croquetes, bifes e pratos de macarrão com molho de tomate e queijo ralado por cima.

Um cansaço desanimado toma conta do menino.

Leda pega os filhos por volta do meio dia. Enquanto Camila fala pelos cotovelos contando o que houve e não houve durante as aulas, Marcelo encolhe-se num canto do carro sem dizer um isso.

Para o almoço, Dona Maria da Luz tinha feito arroz, feijão, salada, omelete e um bife com queijo derretido e molho de tomate. Sobremesa: pudim de tapioca com coco.

Marcelo fica tonto só de olhar para a mesa posta. Mesmo assim, agüenta firme. Disfarça. Explica que está sem apetite e com um pouco de dor de cabeça. Prefere comer mais tarde.

Enche um copo d’água no filtro, vai para o quarto, fecha a janela e deita-se na cama.

Sua dor de cabeça não é de mentira. Tinha começado na escola, depois do recreio e veio crescendo vagarosa tomando conta do cérebro.

Prostrado na escuridão do quarto, Marcelo percebe que as mãos e os pés estão frios. A boca fica seca e com um gosto ruim amarelado.

Resolve tomar um gole d’água. Derruba o copo no chão. Examina as mãos. Estão trêmulas.

Uma angústia fora de hora invade seu peito de menino. Parece uma espécie de vazio. Uma vontade de desistir de tudo, dormir, morrer e sumir para sempre.

Lá pelas cinco da tarde, vem uma vontade incontrolável de chorar. A sensação de que a vida não faz mais sentido. De que seus pais nunca tinham gostado dele. De que é um fracassado, tem um corpo ridículo, não tem nenhum amigo de verdade, vai repetir de ano e seu futuro será, sem dúvida, um completo desastre.

Marcelo tenta lutar. Esforça-se para levantar e vai cambaleando ao banheiro. Sua urina está mais escura do que o normal. Sente vontade de vomitar. Mas vomitar o quê? Examina aquela cara de morto-vivo desenhada no espelho.

Volta para o quarto e desaba na cama. De repente, nota que as paredes estão tortas e balançam. O teto começa a descer, descer e descer em cima dele feito um elevador desgovernado.

É quando desiste daquela experiência louca. Voa até a cozinha, agarra quatro pães de forma e prepara dois sanduíches. Enche de requeijão, coloca, em cada um, um bife frio do almoço, várias fatias de queijo e engole tudo sem mastigar. Depois, bate no liquidificador, leite, chocolate em pó e duas bolas de sorvete de creme, deita-se no sofá da sala e bebe aquilo como se fosse um recém nascido mamando pela primeira vez no peito da mãe. No fim, volta à cozinha e acaba com o resto de pudim de tapioca com coco que ainda restava na geladeira. De quebra, devora três sonhos de valsa que alguém esqueceu em cima da mesa da copa. “Bobeou, dançou” pensa, atirando o papel avermelhado das embalagens no lixo.

No resto do dia, Marcelo continua estranho mas o pior veio depois.

Seus olhos resolveram arregalar de repente, mais tarde, no meio da noite.

Não foi nada real. Não foi briga do vizinho de cima com a mulher. Moto nenhuma passou no Minhocão com o escapamento aberto. Não foi sirene de ambulância nem boyzinho tirando racha. Nem preocupação por causa de boletim. Seus olhos apenas abriram num estalo.

Marcelo espreguiça-se na cama. Espia o relógio na cabeceira. Três e meia.

Sente a testa molhada de suor. Foi um pesadelo daqueles.

Marcelo jogava bola no campinho do sitio do avô. Era um time formado por seus colegas de São Paulo contra a molecada que morava perto do sitio. Eraldo, naturalmente, jogava no time adversário. O jogo está equilibrado. No meio do sonho, Eraldo passa por dois adversário com um drible seco e chuta no gol. Sua perna vai junto com a bola e cai na estradinha de terra ao lado do campo. Um vira-lata vinha passando, agarra a perna e desaparece no matagal com ela na boca. Eraldo fica no meio do campo pulando numa perna só. “E agora?” pergunta ele. “Que é que eu faço?”. Alguém do time de Marcelo grita: “Não faz mal, vai na loja e compra uma nova!”. Eraldo fica aflito: “Mas eu não tenho dinheiro!”. O outro não se abala : “Então pega essa muleta emprestado e vamos continuar o jogo.”. A partida feita de sonho recomeça com Eraldo jogando de muleta. De repente, Marcelo nota que, na verdade, o time de São Roque inteiro é aleijado, tem uma perna só e também joga de muletas. A partir de então, o jogo fica muito fácil. O time de São Paulo deita e rola. Dá chapéu. Dá o drible da vaca. Dá toquinho de letra. Dá lençol. Passa a bola entre a perna e a muleta dos adversários. Estes, suam a camisa, dão tudo de si, esforçam-se ao máximo, mas não conseguem nem chegar perto da bola. A goleada é histórica. O time do pessoal de São Paulo dá gargalhadas e enfia um gol atrás do outro. Marcelo, no sonho, olha o amigo Eraldo mancando, tomando drible, humilhado, mas sem dizer nada. Aquilo revolta. Marcelo agarra a bola com a mão, interrompe o jogo e começa a chorar e a gritar mas sua voz fica presa na garganta. Enquanto isso, o pessoal do seu time ri e ri cada vez mais alto.

O menino estica o corpo em cima dos lençóis. O ruído do relógio tiquetaqueia alto por causa do silêncio. Sente sono e aflição. Jogo louco! Coça a cabeça. Lembra de outro sonho faz tempo, mas que até hoje consegue resgatar do começo ao fim.

Tinha pegado o carro do pai escondido. O trânsito da cidade estava difícil. Sentia-se contente, mas um pouco preocupado. Afinal, era menor de idade e não tinha carta. Seguia uma fila de automóveis que quase não saía do lugar. Andava. Parava. Andava. Parava. No sonho, Marcelo buzinou impaciente. Apertou o acelerador fazendo barulho. De repente, entendeu tudo.

Sem querer, tinha entrado na fila de algum enterro. Na primeira oportunidade, deu sinal e dobrou à direita para escapar. Quando olhou pelo retrovisor , levou um susto. Uma fila de carros tinha vindo atrás dele. Com certeza os parentes e amigos do morto não perceberam a manobra e achavam que ele continuva seguindo o cortejo. Marcelo pisou no acelerador. A fila de automóveis aumentou a velocidade. Eram mais de cem carros. O menino começou a suar. Dobrou à direita. Entrou na contramão. Virou à esquerda. Deu um cavalo-de-pau.

Tentava desesperadamente despistar a procissão de automóveis. Às vezes a fila sumia e ele respirava aliviado. Mas logo lá vinha ela de novo enfileirada no espelho retrovisor. Cada vez mais aflito, o menino examinava aqueles carros escuros com motoristas compenetrados e pessoas sérias de luto passando o lenço nos olhos. Então, teve uma idéia. Arrancou cantando pneu, saiu da cidade, pegou a Imigrantes, acelerou, voou, desceu a serra e acabou chegando no Guarujá, na praia da Enseada. Brecou e, enquanto a fila de carros ia chegando e estacionando, despiu a roupa e, de cuecas mesmo, correu, mergulhando de cabeça no mar.

Marcelo sorri dobrando as pernas na cama. Cada uma! Como e por que será que os sonhos surgem na cabeça da gente?

Resolve tomar um copo d’água na cozinha.

Levanta-se. Todos dormem no apartamento escuro.

Ao entrar na sala, percebe que a porta da cozinha está apenas encostada. Uma luzinha dançarina tremula lá dentro.

Escuta vozes. Parece gente falando. Mas quem estaria conversando na cozinha àquela hora?

Curioso, o menino aproxima-se e empurra a porta de leve.

A cozinha, com as luzes apagadas, está iluminada por quatro velas colocadas nos cantos da mesa. Ajoelhada de costas para a porta, com os braços levantados e a cabeça baixa, Maria da

Luz reza:

Forças do mal saídas do inferno
Que atormentam as ruas da cidade
Vão-se embora pelo poder eterno
Pela força de Deus e a presença
De Santo Anastácio
Saiam de volta de onde vieram
Das escuras paragens, do lugar do
Inferno
Aqui vence a luz
Aqui vence a paz
Deixem a cidade, que está protegida
Pelo sinal sagrado e o sino salamão…

O vento bate tentando arrombar o vidro.

– Dona Maria!

A mulher levanta-se assustada, apoiando-se na beira da pia.

– Ué! diz ela ajeitando os cabelos soltos. – Ocê tá aí?

– O que a senhora está fazendo?

– Rezando, uai!

– A essa hora?

– Deu vontade.

– A senhora falou em… forças do mal?

Maria da Luz aperta a boca. Anda pela cozinha. Parece medir o menino com os olhos. Fala baixinho:

– O coisa-ruim anda solto por aí!

– Coisa-ruim?

– Eles acha que é vira-lata mordendo gente mas não é não, Marcelo. É o coisa-ruim! É o satanás! O chifrudo, o côxo malvado, o cabra lazarento da moléstia solto na cidade em forma de lobisomem!

– Lobisomem?

A mulher explica. Fala da existência de homens magros e amarelados, de orelhas compridas, possuídos e governados pelo diabo. Em geral são o filho homem nascido depois de sete filhas. Podem ser filhos de padre. Filhos de padrinho com afilhada. Ou mesmo de filha que dormiu como o próprio pai.

Marcelo arregala os olhos.

Segundo Maria da Luz, nas noites de terça ou quinta-feira, essa gente virava lobisomem e saía por aí, passava por sete cemitérios, voltava para o lugar de onde tinham partido e transformava-se de novo em gente. Sua corrida alucinada durava a noite inteira, até o primeiro galo cantar. Era o fadário.

– Fadário? Marcelo nunca tinha ouvido falar .

– O fado. A sina. O destino. A praga! A maldição dos quintos dos infernos!

Maria da Luz explica que o lobisomem não costumava atacar homens e mulheres adultos. Só crianças e mulheres grávidas. Rasgava a barriga das infelizes e comia o filho tão esperado.

Costumava também, vez por outra, atacar velhos.

– Tá louco! exclama Marcelo.

A mulher fala mais baixo. Sua voz mete medo.

– Os Lobisomem vem dos inferno pra acabar com a esperança.

– Como assim?

– Ué! Eles mata os bebê que está dentro da barriga da mulher e mata as criança, quer dizer, eles mata a esperança no futuro e o futuro. Sem as criança, Marcelo, quem vai tomar conta do mundo depois da gente?

O menino escuta a mulher, sem saber o que pensar.

– Os Lobisomem também quer acabar com o passado. Eles detesta os antigo, os mais velho, porque esses sabe as história, o que já aconteceu faz tempo nos antigamente. Por isso o danado ataca e tenta matar eles tudinho.

Sem a gente de idade, explica a empregada, quem iria lembrar das coisas acontecidas no passado ou contar como as coisas eram antes?

– São os velho, diz ela, que chega prá gente e diz: não faça isso não, filho, que é perigoso, que isso não dá certo. Olha, não pega esse caminho que esse caminho eu já peguei e ele não presta. Maria da Luz completa: – Eles fala porque têm experiência, viveram antes da gente, estão no mundo faz tempo e viram coisas que a gente não viu. É ou não é?

O menino concorda.

– Sabia que os lobisomem aprecia bosta?

– Bosta?

– Eles come merda!

Marcelo faz uma careta.

– Por isso – a voz da mulher treme feito luz de vela – o bafo deles fede mais que bicho morto e privada cagada entupida. As dentaiada deles é tudo amarela anssim!

O menino vai até o filtro pegar água.

– Ô dona Maria, espera um pouco, a senhora acredita em…

– Credito que nem eu estar aqui olhando ocê! Tem lobisomem solto na cidade sim. Pode assuntar. Tá no jornal todo dia! Tá na cara! Eles só ataca nas noite de terça pra quarta e nas noite de quinta pra sexta. E só pega criança, mulher prenhe e gente velha de idade. Pode ver. Nem carrocinha nem polícia nem exército nenhum – sussurra a mulher com os olhos acesos – vai dar conta de pegar! Eles é da parte do beiçudo! É pau mandado do coisa-ruim!

Marcelo assusta-se com o rosto duro da mulher.

– Se ninguém num fizer nada, muita gente vai morrer!