Chega de saudade

Moderna | 2006

Cap. 10

Araújo e Ophélia marcaram um encontro na terça à noite. Ficou combinado que ia ser na casa de Araújo.

Ophélia pegou o ônibus que sobre a Cardoso de Almeida, vai pela Dr. Arnaldo e desce a Cardeal Arcoverde em direção ao bairro de Pinheiros. Araújo morava na Teodoro Sampaio, 17. O ponto do ônibus fica quase na esquina da Oscar Freire.

Ophélia desceu e foi a pé olhando o céu estrelado. Pensava em dez coisas ao mesmo tempo. A noite estava quente e àquela a rua ainda estava movimentada, automóveis e ônibus levando gente de volta para casa.

Uma gataria nojenta fazia barulho em cima do muro, miando e, para variar, dando unhadas uns nos outros. Um homem de pijama abriu a janela e jogou um rádio a pilha ligado em cima dos nojentos, que sumiram arrepiados. Parecia uma pedra falante. Lá dentro veio uma voz de mulher:

–Que mania, Saraiva! Precisava jogar logo o radinho que mamãe deu? Outro dia, foi o toca-fitas que veio de Manaus; depois o relógio de cabeceira; ontem, nossa máquina de calcular novinha em folha. Assim aonde a gente vai parar? Estou vendo a hora que você vai atirar pela janela nossa tevê em cores 29 polegadas!

Ophélia foi pela Oscar Freire, subiu a Teodoro, passou por um bar onde um grupo de motoristas de táxi conversavam e jogavam palitinho. Do outro lado, o Cine Esmeralda anunciava com todas as luzes a estréia do filme Amor em Chamas.

Antes de chegar na Escola de Medicina, deu com um muro alto coberto de trepadeira e um portãozinho azul-claro. Era o 17. Numa placa de madeira desbotada estava pintado:

Afaste-se! Cuidado! Perigo! Proibida a entrada!

Toque a campainha!

Ophélia tocou. Araújo apareceu sem camisa, risonho, de calção e sandália havaiana:

– Omberlaus! Combermomber vausinis vombercenter?

– Tufterdomber auszufterl, senterufter bomberbomber auslentergrenter!

Os dois caíram na gargalhada. A lua ficou mais bonita.

– Entre madame, a casa é sua…

Ophélia atravessou o portão alto de madeira. Do outro lado havia um matagal escuro e cheio de árvores, árvores e mais árvores, jacarandás, paineiras, buritis, quaresmeiras, unhas de vacas, laranjeiras, jabuticabeiras, bananeiras, pintangueiras e romanzeiros misturadas com trepadeiras, palmeiras, coqueiros, samambaias, xaxins, bromélias e cipós. Apesar do terreno não ter mais de que uns 20 por 30 metros, a professora teve a impressão de que estava penetrando na floresta amazônica.

Entre as folhagens quase invisível havia uma trilha.

Araújo fez um gesto para que Ophélia o seguisse. Era preciso proteger o rosto contra os galhos e cipós. O matagal dava medo mas exalava um perfume gostoso. Depois de um tempo, chegaram numa clareira onde havia uma casinha pequenina. Na frente, varanda com rede pendurada. Na parede, um violão de doze cordas. Um papagaio espiava do poleiro.

– Chegamos… disse ele, oferecendo uma cadeira de palhinha.

– Mas… que lugar simpático! Você… mora… assim?

– Assim como?

– Bem… assim…aqui?

– Já jantou?

– Já.

– Aceita um cafezinho?

Ophélia fez sim com a cabeça enquanto olhava admirada para todos os lados.

Araújo vivia numa espécie de casa de caboclo urbana. A casa térrea e pequena tinha varanda, sala boa, dois quartos, cozinha e banheiro. Paredes de barro batido, ripas de madeira trançada, toda caiada, telhado de sapé, janelões grandes que se fechavam apenas com uma chapa de madeira, sem vidro nem nada. Piso? De cimento rústico coberto por uns tapetinhos coloridos.

Passando a varanda, vinha uma sala gostosa com mesa, quatro cadeiras, uns almofadões pra sentar, um sofá velho, um armário para guardar louças, duas estantes altas com livros até o teto, discos e Cds. Pelas paredes, muitas e lindas xilogravuras nordestinas. Num canto, um piano de caixa e vários instrumentos de sopro pendurados num suporte de ferro. Tudo isso cercado por vasos de cerâmica, enfeites de madeira, um arco e flecha e um tacape presos na parede, um aparelho de som, partituras espalhadas por todo canto, dois baús de madeira e muitas flores. Atrás de uma das cadeiras, uma cobra grande empalhada deitada no chão.

– Abram alas!, disse ele. – Olha o cafezinho fresquinho com beiju!

– Hum! Seu fogão é a lenha? Que cheirinho! Nossa… faz séculos que não como beiju…

Os dois sentaram nos almofadões.

– Araújo… que delícia a sua casa! Que sossego! Parece até que a gente está fora da cidade. Me diga uma coisa. O que é aquela placa lá fora escrito “perigo”?

– Ah! Isso… Anos atrás – iniciou ele pigarreando um pouco – fiz uma viagem pelo interior, lá pelas bandas do norte de Mato Grosso, bem depois de Lucas do Rio Verde. Um matão virgem daqueles. Era noitinha. Dei com uma cabana e pedi pousada. Uma família de caboclos vivia ali, isolada do mundo, sem luz elétrica nem nada, vivendo de caça, pesca e das coisas do mato. Uma gente boa que só vendo, Ophélia. Deram um jeito e arranjaram um cantinho pra eu dormir. Estava exausto. Arriei a mochila, dividi uma comida que tinha pronta com eles, deitei na rede e dormi feito pedra. Acordei no outro dia com o sol já quente. Estiquei os braços, bocejei, olhei distraído pro teto. Na madeira que prendia o telhado de palha estava enrolada uma baita cobra. Imagine meu susto. Dei um pulo da rede, peguei a espingarda, armei e fiz pontaria. Nisso aparece um menino, filho do caboclo, gritando “Não, não, não, moço, num mata a Lindóia que ela é nossa filhinha!” Descobri que por lá é comum o pessoal domesticar cobras como a jibóia. Viram bicho de estimação das crianças. Mansinhas.

– Nossa…

– E com a vantagem de não sujarem a casa, afastarem ratos e comerem só uma vez por mês…

– Não diga! O que é que elas comem?

– Mixaria… Gatos, ratos, lagartos… bichos pequenos que não servem pra nada. Mais tarde, em outra viagem, arrumei um filhote de jibóia, trouxe pra cá e dei o nome de Lindóia. Uma homenagem.

– Você… tem cobra aqui?

– Olha ela lá, dormindo embaixo da cadeira.

Ophélia parou de tomar café. Colocou a xícara na bandeja. Virou a cabeça devagar.

Examinou a cobra empalhada, enrolada debaixo de uma cadeira, perto do piano, um minhocão enorme e imóvel.

– Você está brincando, Araújo. Esse bicho está vivo?

– Não precisa ter medo, Ophélia. A Lindóia é um doce de coco. Está comigo desde que nasceu. A placa lá fora foi brincadeira. Isso não morde ninguém. Cobra dorme o tempo todo. Com a pança cheia, então, nem se fala. Agora, não pense que é um bicho indiferente, que não liga pro dono. Se, por acaso, eu saio e demoro, ela fica aflita me procurando pela casa. Quando chego, sempre preparo pra ela um pouco de chá de camomila com açúcar. Por falar nisso, que dia é hoje?

– Terça, balbuciou a professora, olhos fixos na cobra imóvel.

– Eu sabia! Hoje é dia da Lindóia papar.

Ophélia olhou bem para o amigo e caiu na risada.

–É tudo brincadeira! Eu sabia! Você quase me pega Araújo. Imagine! Uma cobra jibóia dentro de casa!

– Espera um pouco, respondeu Araújo.

Entrou num dos quartos e voltou com uma gaiola, dessas que infelizmente usam para prender passarinhos, cheia de ratinhos brancos.

Ophélia ajeitou os cabelos.

Araújo aproximou-se da cobra. De joelhos, abriu a gaiola e soltou um rato.

O animalzinho ficou meio perdido, andando feito barata tonta, sem saber para onde ir. De repente a cobra empalhada levantou a cabeça e num ataque violento engoliu o rato. O rabinho cor de rosa ainda ficou se mexendo do lado de fora da boca antes dele desaparecer completamente no bucho da jibóia.

Ophélia gritou “Cruz credo, minha Nossa Senhora!” e fugiu para a varanda.

Araújo ainda soltou mais três ratinhos. Os três foram devorados do mesmo jeito.

–A gente come carne de vaca. Jibóia come carne de rato. Fazer o quê? perguntou o velho, levando a gaiola de volta para o quarto.

Com cuidado para passar longe da cadeira da cobra, Ophélia voltou e sentou-se de novo na cadeirinha de palha e resolveu puxar outro assunto.

– Como é que você mora logo aqui, Araújo, na Teodoro Sampaio, e eu nunca vi você? Passo por aqui de ônibus quase todo s dia…

– E olha que eu moro, deixa eu ver, vai fazer bem uns trinta anos. Herdei esse terreno do meu falecido pai. Quando ele morreu, eu tinha voltado de uma viagem pelo Norte, onde vivi durante alguns meses com os índios…

– Não diga!

– Sim, morei oito meses numa aldeia Kamaiurá, perto da lagoa de Ipavu, no Parque Xingu. Uma experiência, por sinal, fascinante. Está vendo este arco preto preso na parede? Ganhei de um índio, Ambrósio Kuluene, que depois virou um grande amigo. Aquela flauta também. Chama Jakui. É mágica. Só pode ser tocada por homens. Quando voltei, comecei a procurar um lugar para morar. Meu pai tinha morrido e me deixado esse terreno. Sou músico. Nunca tive muito dinheiro. Minha primeira idéia foi vender e com o dinheiro comprar um apartamento pequeno. Depois pensei. O terreno fica na rua Teodoro Sampaio. Achei que isso era um sinal. Esse Teodoro Sampaio foi um tremendo estudioso das coisas de nossa gente, um homem que andou por essa terra toda, um dos primeiros a estudar a língua tupi. Eu também sempre gostei de cultura popular, da arte do povo, das culturas indígenas. Voltei ao terreno. Tinha sido do meu avô e nunca tinham cortado as árvores nem o mato. Tem árvore aqui com muito mais de cem anos. Entrei no meio do matagal, senti aquele cheiro de mato. De repente veio uma voz dentro de mim: “Esse é o seu lugar!” E foi assim, Ophélia. Construí essa casinha, substituí as plantas que estavam fracas ou mortas, plantei muitas outras e, digo a você sinceramente, não me arrependi até hoje.

Quando falava, Araújo parecia mais jovem. Seus gestos eram largos, decididos, a voz firme. Ophélia olhava aquele amigo a quem não via há tanto tempo. Que figura! Quanta alegria de viver!

– Araújo… puxa… parabéns! Que vida! Quanta coisa! Músico, sertanista, conhece o interior do nosso país, a cultura do nosso povo…

É que Ophélia adorava esses assuntos. Na escola dava aula de folclore para a criançada mais velha. Lembrou até uma lenda sobre as jibóias:

– Dizem que, antes dela dar o bote, solta um suspiro misterioso que desmancha o sangue da vítima!

Olhou para a cadeira, preocupada. A serpente tinha sumido.

– Sabe, Ophélia, disse Araújo, – a gente aqui na cidade está tão obcecada em trabalhar, ganhar dinheiro, subir na vida, falar inglês, fazer leitura dinâmica, aprender informática e tudo só para ganhar dinheiro e poder comprar, comprar, comprar. As pessoas não querem saber se a vida dos outros está boa, se a sociedade é justa ou injusta, se a vida tem ou não tem sentido. Elas só pensam em assistir televisão para ver os anúncios e depois se empanturrar de tênis, carros, eletrodomésticos… sei lá! As pessoas nem sabem mais o que é ser um cidadão. As pessoas se contentam em ser apenas consumidoras. Só sentem prazer quando compram coisas e consumem. Cadê o prazer de existir, respirar, sentir o corpo, encontrar pessoas, amar, ter saudades, dançar, ficar de papo pro ar? Cadê o sonho de construir uma sociedade melhor e mais justa onde todos possam trabalhar, ter uma vida digna e ser felizes? A vida virou uma rotina automática, todo o dia a mesma coisa, a pessoa não consegue ver mais nada, sentir nada. Não tem tempo pra família, não conhece os vizinhos. Esquece a cidade e até o país em que está! Esquece não, ignora! Não sabe o que tem nem o que não tem. Como está, nem pra onde vai. Só pensa no seu próprio umbigo e ganhar mais dinheiro. De que adiantar ser rico numa sociedade tão injusta com pais de família sem estudo, sem saúde e sem emprego? Com crianças fora da escola?

Araújo cruzou as pernas no almofadão.

– Veja o caso dos índios. Estes então… É criminoso! Estão acabando, morrendo pelo mato, cheio de doenças. Alguém está ligando? Estão roubando as terras deles para cortar madeira, plantar soja ou extrair minérios. Querem que eles se acostumem ao nosso tipo de vida da noite pro dia. E a cultura deles? E as religiões deles? E os segredos que eles sabem? E os jeitos que eles inventaram para viver no mundo? Está vendo aquela madeira presa na parede? Dê uma olhada…

Ophélia levantou-se. Colocou os óculos. Era um pedaço velho de tronco de jatobá. Nele estava escrito:

Onça existe para ficar no mato, para comer bicho e também para enfeitar a mata; pássaros e passarinhos, para ficar na árvore, para se criar, dar penas e, alguns, para se comer; peixe, para ficar na lagoa à espera de quem os queira pescar. História existe para ser contada pelos velhos. História de índio é como a de civilizado. Serve para que se conheça como se fazem as coisas, para não esquecer o antigo, enfim, para não acabar. Gente serve para ficar em pé, trabalhar, namorar, casar e ter filho.

– Ouvi isso numa conversa com o chefe Kamaiurá., continuou Araújo. – Achei certo. Achei bonito. Anotei pra nunca mais esquecer. Não devia haver uma escola em todo território nacional, do Oiapoque ao Chuí, que não tivesse pelo menos um professor índio contratado, pintado, de tanga, borduna, arco e flecha e sabe ensinando o quê? Lições da natureza, coisas da vida e da morte, as relações do homem com os animais, as plantas e os astros, noções sobre o nosso corpo, nossas energias, nossa terra, para que servem os bichos, as plantas, histórias da lua e das estrelas. Ophélia, por que você não propõe isso na sua escola?

Ophélia imaginou um índio pintado e pelado dando aula pra criançada.

–Araújo! Que idéia maravilhosa! Para os alunos ia ser uma riqueza. Ver a diferença entre o namoro dos índios e o namoro de gente da cidade. Como são os casamentos lá e cá. Como são as famílias. Quais as histórias que eles contam à noite. Como é a religião deles. Como as crianças índias são educadas. Como são as leis. Como eles lidam na tribo com os interesses individuais e os coletivos.

Os olhos da professora sonhavam:

– Os alunos podiam inclusive, de vez em quando, fazer excursões onde o índio explicaria melhor as coisas do mato. Já pensou acampar na serra da Mantiqueira com um índio? Ia ser uma lição pro resto da vida!

Araújo sorriu.

– O dia em que isso acontecer vai ser tudo diferente. Ninguém vai querer acabar com praças nem com árvores. Garanto que as cidades vão ser menores, sempre perto do mato, as pessoas menos apressadas e mais preocupadas com o bem estar de todos, cobras andando soltas nas ruas, escolas para todo mundo, todo mundo vai ter horta em casa, bibliotecas e museus, muitas flores, leite de vaca no pé, conservatórios musicais, nada de viver feito máquina desumana, só pensando mecanicamente em comprar, comprar, comprar… Vamos fazer uma batida de maracujá? Tenho uma pinguinha, que comprei em Silveiras, que é um troço.

– Ajudo você a fazer mas não vou beber. Não posso. Bebida alcoólica me dá enxaqueca.

– A gente faz uma bem fraquinha.

– Então tomo um gole só pra fazer companhia.

Enquanto preparavam a bebida, voltaram ao assunto da praça.

Ophélia contou que tinha ido à prefeitura duas vezes para nada. Primeiro não lembravam que praça era. Depois disseram que aquilo era assunto encerrado. O decreto já tinha sido assinado pelo prefeito.

– Vamos ter que engolir esse sapo, meu caro, disse ela balançando a cabeça. – Se até o prefeito já autorizou. Chegamos tarde.

Araújo bebia calado, falando sozinho.

– Fazem quase sessenta anos… a gente namorou… agora…

– Como?

– Nada. Estava pensando aqui comigo. Sabe, Ophélia, acho que vai ter que ser no muque.

– No muque?

– No muque. Na marra. Não sei… Vamos fazer o seguinte. São vinte pra meia-noite. Vai pra casa e vê se tem alguma idéia. Eu também vou ficar aqui pensando. Na segunda feira eu ligo, aí a gente decide.

Levantou o copo.

– Posso contar com você nesta luta?

– Claro.

– Até o fim?

– Até o fim.

– E se a gente tiver que enfrentar coisa grossa? Você topa?

– Topo!

– Então… tintim…

– Tintim.