Trecho do livro O leão da noite estrelada

Saraiva | 1995

Cap. 10

A lua iluminava a floresta feito um holofote. Um vaga-lume , flanando pelo ar, pousou delicado na ponta do focinho do leão. Deu coceira. Veio a vontade de espirrar. Fazendo careta, o felino fungou e, ao fungar, sentiu cheiros. Abriu os olhos de orelha em pé dando salto. Percebeu que estava cercado. Arreganhou os dentes pronto para tudo.

Parados em círculo, os animais olhavam silenciosos para o leão. Pareciam admirados, examinando seus movimentos.

Sentindo-se acuado e sem entender o que estava se passando, o felino soltou um rugido ameaçador.

Um galho rangeu. Um sombra mexeu-se no alto da árvore. Era uma onça pintada. Veio descendo mansamente.

O leão perdeu o fôlego diante daqueles movimentos elegantes.

A onça era belíssima. Saltou da árvore e, caminhando vagarosa, parou em sua frente.

O leão rosnou.

A onça rosnou.

Os dois ficaram se olhando, olho no olho.

A onça pintada balançou a cabeça quase sorrindo. Disse que estava honrada. Falava baixo. Explicou que há muito tempo os animais aguardavam aquele dia.

O leão admirou a beleza da onça pintada. Não lembrava de ter visto antes animal tão bonito. Franziu a testa, olhando em volta. Não podia esquecer que estava cercado. Sentiu uma mistura de medo e de fascínio.

Dentro da noite escura, iluminados pela luz parada no céu, milhares de animais haviam pousado no ramos, agarravam-se nos galhos, enrolavam-se nos troncos, trepavam nas pedras, escondiam-se nas moitas, sentavam-se, deitavam-se, penduravam-se encolhidos e em pé.

Tensa, a fera selvagem preparou-se para um combate de morte. Sua cabeça rodava. Olhou em volta de novo. Os animais não pareciam nem um pouco ameaçadores.

O felino, então, resolveu falar. Disse que não estava entendendo nada. Fez perguntas. A quem, afinal, os animais estavam esperando?

Uma anta emergiu das sombras. Afirmou que estavam aguardando por ele mesmo. E há muito tempo. Disse que ele era o esperado. Aquele sobre quem os velhos, à noite, contavam histórias para seus filhotes. Ele era o herói. O rei. O paladino. O campeão. O que tinha vindo de longe para salvar.

No alto de uma árvore, um macaco de cara vermelha começou a gritar e a dançar. Os pássaros piavam e batiam as asas em plena noite. Os animais diziam coisas desencontradas. Falavam em última esperança. Falavam em milagre. Falavam na salvação que tinha chegado.

O leão estava pronto para morder o primeiro que se aproximasse.

Uma ema adiantou-se com lágrimas nos olhos. Confessou sua emoção. Disse que não conseguia deixar de lembrar a voz de sua mãe recomendando a ela que tivesse fé, que tivesse paciência, afirmando que um dia ele vinha, que um dia ele haveria de chegar. E agora, exclamava ela, “êle” estava ali!

Um esquilo perdeu o controle, correu e lambeu a pata do felino.

Os animais faziam um ruído ensurdecedor. Pios, grunhidos, trinados, miados, roncos, zumbidos, coaxados, chiados, bramidos, uivos, assobios, mugidos, latidos tudo junto. Pareciam alegres.

Olhavam o leão cheios de admiração e confiança.

O felino rugiu meio de lado procurando, ao mesmo tempo, um jeito de escapar.

Disse que devia haver algum engano. Não sabia do que estavam falando. Contou que estava ali por acaso e que tudo não passava de um grande mal entendido.

– Mal entendido? Olhe a estrela!

Os animais uivavam. Dedos, garras, patas e asas apontaram para o céu onde uma luz intensa brilhava parada.

A fera selvagem ficou na mesma.

Um sapo velho, enrugado e escuro, subiu numa pedra e pediu a atenção de todos. Olhou respeitoso para o leão. Recordou as velhas histórias contadas pelos antepassados. Elas eram claras. Um dia, diziam as histórias, o céu escureceria. Um dia, apareceria uma luz no céu. E a luz andaria e pararia iluminando um ponto. Era o sinal. No ponto iluminado, surgiria aquele a quem todos esperavam desde sempre. Era, continuou o sapo, exatamente o que havia acontecido. Porisso, todos estavam ali.

O felino examinou o céu. Apertou os olhos. Fez uma careta. Disse que aquela luz não era nada. Que aquilo era bobagem. Ele não era o esperado. Não era salvador de coisa nenhuma. Falou que tudo tinha começado por causa de uns malditos caçadores.

Os olhos dos animais brilhavam.

O leão contou que tinha ido parar num circo e depois num jardim zoológico. De lá, explicou, tinha fugido e agora andava por aí à toa…

Os bichos começaram a gritar: – Viva nosso rei!

– Viva nosso herói! – Viva nosso salvador!

Assustado, o felino urrou e gritou. Insistiu que não era nada disso!

E riu. Nunca, em toda a vida, tinha visto uma floresta tão rica. Nunca tinha visto tanta beleza nem tanta fartura. Nem ouvira falar numa selva como aquela onde os animais andavam juntos em paz e harmonia. Ali, concluiu rosnando, era um paraíso e ninguém precisava ser salvo de nada.

Aquelas palavras parece que feriram os animais.

Guinchos, protestos, uivos e chiados vieram de todo o lado. Alguns bichos choraram, balançando a cabeça e dizendo não e não!

Um galho quebrou derrubando no chão vários animais enfurecidos.

A onça interrompeu a barulheira.

O leão examinou, de novo, aquela figura iluminada pela lua. A elegância com que se mexia. Os lábios bem desenhados. A pinta perto da boca. O pelo liso e macio. As manchas. O perfume discreto. A musculatura poderosa e delicada.

A onça disse que o leão estava redondamente enganado. Falou que por ali todos eram selvagens. Nunca tinham feito uma reunião como aquela antes. Confessou, olhando para os lados com o rabo do olho, que sentia vontade de devorar vários dos animais ali presentes. Arreganhou os dentes, molhando os lábios com a língua. Uma capivara estremeceu, encolhendo-se atrás de uma moita.

O leão sorriu para a onça. Compreendia – oh, se compreendia! – os desejos secretos daquela gata.
Mais uma vez, examinou o céu. Viu a luz, uma estrela brilhante e intensa brilhando sobre sua cabeça.

Espiou aqueles animais em sua frente.

Sentia-se confuso. Rugiu e esmurrou o chão com as duas patas, sacudindo violentamente a juba. Sentou-se encolhendo os ombros. Perguntou para que, afinal de contas, eles tanto queriam e precisavam de um salvador.

Um silêncio cortou o espaço feito um chicote.

A noite, em volta, parece que ficou mais escura.

Os animais começaram a falar, baixo, um de cada vez.

Tremiam olhando para os lados.

Naquela noite. o leão escutou coisas terríveis.

Cada animal fez um relato, contou detalhes, apresentou provas e descreveu uma situação.

Em certos momentos, a fera selvagem chorou.