O livro das palavras

Editora do Brasil | 2007 | Ilustrações: Mariana Massarani

Cap. 5

O livro das palavras seguiu caminhando por um chão cada vez mais inesperado, cheio de tipos de terra misturados, areias, pedras, folhas e buracos, que alguns chamam “estrada de terra”. Foi tentando entender o tamanho e a forma que um amor pode ter.

Um fogo que arde sem se ver? Uma ferida que dói e não se sente? Um contentamento descontente? Não conseguia, nem de longe, encontrar nada parecido dentro das páginas de si mesmo.

– Justo eu, que tenho milhares de verbetes! estranhou ele, pensativo.

Apesar disso, sentia-se bem.

Tinha sido delicioso descobrir a força bruta do mar, as ondas incontroláveis indo e vindo batendo na praia e aquele casal apaixonado.

“A paixão é parecida com o mar”, pensava o dicionário sem saber direito explicar como nem por quê.

A estrada da terra era cheia de subidas, descidas e curvas. Depois de uma longa descida, o livro viajante encontrou um casal de velhos.

Ele usava chapéu de abas largas e um paletó muito puído. Ela vestia uma saia comprida e tinha uma flor presa nos cabelos brancos amarrados num rabo de cavalo. Fumava cachimbo. Os dois conversavam sentados num barranco. Ele estava descalço. Ela usava sandália de plástico e meia.

O livro se aproximou. O velho perguntou se ele sabia as horas. O livro disse que sim.

– Horas são “segmentos de tempo equivalentes a sessenta minutos, e vigésima quarta parte de um dia solar ou do tempo em que o planeta Terra leva para girar em torno de si mesmo”.

O casal arregalou os olhos.

– Ô loco sô! A gente só queria saber as horas, moço.

O dicionário explicou que sabia muito bem o que eram as horas, os minutos e os segundos mas não usava relógio.

A mulher mudou de assunto. Contou que eles pararam ali para descansar. Pretendiam ir à missa mas a igreja ficava longe.

O dicionário revelou que era um livro e que estava viajando para conhecer a vida e o mundo. .

– Livro? perguntou o homem. – Livro de histórias?

– Muito mais que isso! Sou um dicionário, respondeu o dicionário estufando o peito e exibindo suas duas mil e tantas páginas.

O casal não sabia o que era um dicionário.

– Um dicionário, explicou o livro com voz orgulhosa e um tanto surpresa é “o conjunto de vocábulos de uma língua, ou de termos próprios de uma ciência ou arte dispostos em ordem alfabética e que fornece além de definições , informações sobre sinônimos, antônimos, ortografia, pronúncia, classe gramatical, etimologia etc.”

O casal não entendeu nada.

– A gente é analfabeto, explicou a mulher.

O livro das palavras foi pego de surpresa.

– Mas analfabeto, deixe-me ver aqui, é “ aquele que desconhece o alfabeto; ou aquele que não sabe ler nem escrever”.

– A gente queria muito saber ler e escrever, confessou o homem.

O livro não podia acreditar:

– Vocês não sabem ler?

– Nem escrever, disse o velho de chapelão.

– Mas então vocês não sabem nada!, exclamou o dicionário.

– Como assim? perguntou a mulher.

– Ué, disse o dicionário. – Se vocês não sabem ler nem escrever vocês não sabem gramática, matemática, ciências, história, geografia… ou seja…vocês não sabem nada.

O casal trocou olhares.

– Ler, escrever, gramática e matemática a gente não sabe não, reconheceu o velho.

– Mas sabe outras coisas, garantiu a velha.

– O quê por exemplo? quis saber o dicionário.

O velho sorriu.

– Eu sei trabalhar na roça, sei preparar a terra e sei plantar e colher, disse ele. – Também sei construir casa, fazer telhado e levantar cerca. Sei tratar de animais, ordenhar vaca, sei domar cavalo bravo, caçar, pescar, tanta coisa…

– E eu, disse a velha – sou cozinheira de mão cheia.

– A mais melhor das redondezas, completou o velho.

– E sei costurar e lavar roupa, sei cuidar da horta, do galinheiro e da filharada. E completou: – A gente tem nove filhos, dois morreram. O resto vingou, graças a Deus!

– Hoje tá tudo graúdo, completou o velho, com orgulhoso. – Cada homão e mulherão que dá gosto. A gente tem até neto!

O dicionário percebeu que sabia conversar mais sobre definições e lições e menos sobre assuntos banais do dia-a-dia como amor, trabalho e vida familiar.

– Se a gente for falar tudo que a gente sabe, moço, disse o homem, – a gente fica aqui o mês inteiro e não dá conta do recado. Por exemplo: eu canto e toco viola e até sei fazer viola. E brincou:

– E jogo baralho com os amigos.

A velha riu dando uma cotovelada no braço do marido.

– E eu sei ajudar as moças na hora de parir, disse a mulher. – Já botei mais de duzentas crianças nesse mundo de Deus. E sei fazer muito remédio com as plantas do mato.

O livro lembrou-se do homem apressado em busca de alguém que pudesse ajudar sua mulher a dar a luz.

– Fora isso, lembrou o velho, – a gente gosta de arrasta-pé.

– Arrasta pé?
– É moço, a gente gosta de dançar samba.

Uma vaca mugiu ali perto.