Trezentos parafusos a menos

Moderna | 2013

A primeira edição de Trezentos parafusos a menos foi publicada em 2002 e em 2004 ganhou o White Ravens, prêmio dado pela Biblioteca Internacional de Livros para Crianças e Jovens de Munique. Imagino que a história desse livro tenha nascido a partir da minha própria experiência como pai. Quantas e quantas vezes na vida fiz ou disse coisas e, de repente, dei de cara com um dos meus filhos, às vezes os três juntos, coçando a cabeça com olhos arregalados e abismados como se dissessem: “meu pai é o fim da picada!”. Por certo, quando criança, também olhei meus pais e senti exatamente o mesmo espanto e a mesma incredulidade. Creio que essa mistura de desentendimento e querer bem, surpresa, incômodo, estranhamento, culpa e admiração, tudo isso mais algum divertimento e ironia, ajudam a gente a construir a intimidade com as pessoas de quem a gente gosta. Somos diferentes uns dos outros e conviver com a diferença é uma espécie de arte que a gente vai aprendendo devagarinho ao longo da vida. Só sei que a partir da imagem inicial, uma menina sentada na privada examinando os ladrilhos do chão e pensando no pai, surgiram na cabeça mil cenas e logo comecei a escrever. Lembro de ter decidido trabalhar sem um plano geral: escrever um capítulo de cada vez sem pensar no que aconteceria depois, muito menos num desfecho. E foi o que fiz. Escrevia o capítulo várias vezes até achar que ele estava resolvido. Relia no dia seguinte e só então pensava numa sequência. Foi divertido trabalhar dessa forma e até utilizei o mesmo “método” em outros livros. Como não podia deixar de ser, durante o percurso, surgiram reformulações. Por exemplo, quando estava no meio do texto, me dei conta de que seu Luiz e dona Ruth, os pais de Tatiana, poderiam ser muito jovens, coisa que não havia planejado. Fui obrigado a retomar os primeiros capítulos e ir acertando as coisas em função deste dado novo. O fato de eles serem um casal jovem não só alterou a minha compreensão geral da história que se formava, como influiu nas cenas que ainda iriam acontecer. Com certeza, muitas ideias nasceram das emoções e observações do meu dia a dia. O personagem Jeferson, para ficar num exemplo, é inspirado no Jeferson, um menino que vivia debaixo do viaduto da Washington Luiz pertinho da casa onde eu morava na época. Sua irmã menor chamava-se Tatiana. O irmão mais velho estava na cadeia. Eram filhos de uma doméstica que perdeu o emprego, foi morar na rua e morreu de aids. Outra coisa: sou músico Amador e amigo de alguns músicos. Embora nunca tenha sonhado em trabalhar com música, essa possibilidade nunca me foi estranha, eis por que pude escrever sobre o assunto. Como estudei no Colégio Porto Seguro, de tradição alemã, tive a sorte de conhecer vários alemães-peças-raras como o Fritz Munduruku. A cena do restaurante, no capítulo 13, veio do Teatro Invisível, criado pelo genial dramaturgo Augusto Boal, e entrou na história não tenho a menor ideia como (quem quiser saber mais sobre essa rica experiência da arte teatral, dê uma espiada no Google. Vale a pena). Enfim, posso dizer que fui escrevendo e, aos poucos, de bocado em bocado, as cenas foram se alinhavando por elas mesmas. Com uns oito ou nove meses de trabalho, o texto de Trezentos parafusos a menos estava pronto.
O autor
P.S.: “Coisa nº 33” é naturalmente uma homenagem ao extraordinário músico Moacir Santos. Quanto ao “Leito de Procusto”, aconselho o leitor a dar uma pesquisada no assunto. Acho importante conhecer e jamais esquecer o que esse facinoroso bandido grego fazia no leito com suas vítimas. Uma coisa é certa: seu espantoso crime continua vivo até os dias de hoje!